Medicina na era espacial: dados de satélite permitem entender que o risco global de diarreia bacteriana depende de fatores climatológicos, inclusive no Ceará
Data da publicação: 3 de março de 2023 Categoria: divulgação científicaA cada ano, doenças diarreicas são relacionadas a 212 mil mortes em países de baixa e média renda. Dentre os agentes causadores de disenteria, um tipo de bactéria de nome Shigella infecta anualmente 267 milhões de pessoas, em especial aquelas que vivem em áreas rurais ou sob riscos ambientais, como má qualidade da água, falta de acesso a cuidados e saneamento inadequado. Uma vacina para evitar esse tipo de enfermidade encontra-se em avançado estágio de desenvolvimento, com previsão de sua eficácia já ser testada no próximo ano (2024) em estudos clínicos ditos fase 3. Para isso, é importante estimar a distribuição geográfica do risco de infecção por Shigella para as autoridades em saúde poderem se orientar sobre quais populações seriam consideradas de alta prioridade.
Assim, um estudo com dados globais, chamado de meta-análise, foi pensado para mapear a infecção por Shigella em nível sub-regional e em vários continentes. Em vários locais, o estudo incluiu acesso aos dados de participantes individuais mediante acordos de uso de dados com a instituição colaboradora, incluindo no Ceará. A ideia foi produzir mapas de alta resolução da prevalência prevista de Shigella em países de baixa e média renda. Outra novidade desse estudo é ter incluído pela primeira vez comparações de conjunto de determinantes que variam em diferentes escalas, desde o indivíduo até o macroclima mais amplo e, para vários desses determinantes, consideraram variabilidade temporal na resolução diária. O resultado é que agora será possível selecionar locais apropriados para os próximos ensaios de fase 3 das vacinas contra Shigella, e as populações que vivem em pontos críticos identificados podem ser priorizadas para futuras campanhas de distribuição de vacinas.
O Ceará foi incluído no estudo pelo fato de aqui atuarem colaboradores da rede MAL-ED, grupo internacional de cientistas preocupados com questões de desnutrição e doenças entéricas. Os estudos locais foram liderados pelo pesquisador Aldo Ângelo Moreira Lima, professor da Faculdade de Medicina e co-autor do artigo publicado na Lancet Global Health, uma das principais revistas científicas nessa área do conhecimento. Os dados cearenses são oriundos de estudos em comunidades locais acompanhadas rotineiramente por equipes de agentes de saúde em estudos que os epidemiologistas chamam de coorte e caso-controle. Estudos de coorte coletaram amostras de fezes de acordo com cronogramas predefinidos e, portanto, pretendiam coletar amostras sintomáticas e diarreicas aproximadamente na taxa em que a síndrome ocorre na comunidade, embora a maioria das amostras seja obtida enquanto os participantes estejam livres de sintomas gastrointestinais. No estudo caso-controle, recrutaram-se ativamente casos de diarreia que ocorrem na comunidade, combinando-os com controles assintomáticos. O desfecho de interesse foi o estado infeccioso por bactéria Shigella, confirmado por exame PCR realizado em amostras de fezes diarreicas e de vigilância (assintomáticas) coletadas de crianças com 59 meses ou menos. Também foram incluídas amostras de crianças sintomáticas que foram atendidas em unidades de saúde.
Os dados biológicos foram cruzados com dados da agência espacial americana (NASA), via Sistema Global de Assimilação de Dados Terrestres (cuja sigla é GLDAS). Covariáveis temporais ambientais e sociodemográficas espaciais extraídas no local georreferenciado de cada criança foram incluídos no estudo. Estimativas diárias históricas de variáveis hidrometeorológicas derivadas da observação da Terra extraídas do sistema GLDAS foram analisadas em seu potencial para influenciar a transmissão de patógenos entéricos.
Nesse estudo, foram incluídas 66.563 amostras coletadas em 23 países localizados em continentes como América (Central e Sul), África e Ásia. O cruzamento entre dados biológicos e de monitoração espacial revelou resultados interessantes. Por exemplo, a probabilidade de infecção por Shigella excedeu 20% quando os níveis de precipitação chuvosa e a umidade do solo (ambos baseados em dados georreferenciados coletados entre 2005 e 2019) estavam acima da média. A probabilidade de infecção por Shigella teve um pico de 43% em casos de diarreia não complicada quando a temperatura do ar alcança 33°C, acima da qual diminuiu. Para os indivíduos sintomáticos atendidos em unidades de saúde, a probabilidade de infecção foi próxima a 60%. Em todas as categorias de indivíduos (assintomáticos, sintomáticos leves na comunidade e sintomáticos em unidades de saúde), a probabilidade de infecção apresentou tendência em diminuir à medida que a velocidade do vento era maior que 4 m/s. Isso demonstra a distribuição de Shigella ser mais sensível a fatores climatológicos, como temperatura, do que anteriormente reconhecido. Fatores atmosféricos e hidrológicos provavelmente afetam a sobrevivência e dispersão de bactérias como Shigellafora do hospedeiro, onde condições quentes e úmidas podem prolongar sua viabilidade.
Figura 1 – Probabilidade de infecção por Shigella em indivíduos (assintomáticos, sintomas leves na comunidade ou sintomáticos atendidos na unidade de saúde) em função das variações da temperatura do ar (air temperature) e velocidade do vento (wind speed). Note que o pici de probabilidade de infecção ocorre com temperatura de 33 °C, enquanto a partir da velocidade de 4 m/s tende a diminuir a probabilidade de infecção por Shigella.
O estudo também traçou a distribuição geográfica da prevalência média anual de positividade para Shigella no ano de 2018 em crianças entre 12 e 23 meses. No Ceará, a prevalência prevista de Shigella em indivíduos assintomáticos é intermediária entre aquelas que variaram de menos de 2,5% em áreas do oeste da China, Ásia central e Andes argentinos para mais de 20% em pequenos bolsões da América Central (notavelmente o leste da Nicarágua), norte da América do Sul, África subsaariana tropical, Bangladesh, sudeste da Ásia (principalmente nordeste do Camboja) e Papua Nova Guiné. Entre indivíduos sintomáticos, a prevalência estimada é superior a 30% no Ceará, níveis elevados e equivalente à maior parte do planeta. De fato, a prevalência prevista em indivíduos com diarreia medicamente atendida ultrapassou 30% em quase todos os trópicos (com algumas exceções, como partes de Bornéu e dos Andes), bem como em grandes áreas subtropicais do México, leste da China e nordeste da Argentina.
Figura 2 – Prevalência estimada de infecção por Shighella por localização geográfica apenas em indivíduos não sintomáticos. A cor violeta indica menor prevalência, enquanto a cor marrom indica maior prevalência.
Os resultados obtidos também demonstram o risco de infecção por Shigella ter forte associação com a idade – a prevalência mais alta ocorre em crianças mais velhas (24–59 meses), com quase 5 vezes mais chance de positividade para Shigella do que crianças com menos de 1 ano de idade. Se estas crianças vivem em áreas periurbanas, há uma associação mais direta com a infecção bacteriana do que se elas vivem em zonas rurais. Em muitos casos, as residências rurais sequer possuem instalações sanitárias, isto é, a defecação ocorre a céu aberto. De forma surpreendente, esse estudo demonstrou que morar em uma casa na qual seus moradores praticam defecação a céu aberto conferiu chances menores de infecção por Shigella em quase um quinto (18%), nível de proteção equivalente aos indivíduos que possuem instalações sanitárias adequadas. Essa descoberta sugere que a céu aberto, com mais exposição a luz solar (UV principalmente), a bactéria tem menor sobrevivência e reduz sua disseminação e traz a implicação de que, ao menos do ponto de vista da prevenção à infecção por Shigella na infância, não ter banheiro é preferível a um banheiro inadequado. Por outro lado, a defecação a céu aberto ainda se configura um fator de risco para outros patógenos diarreicos mais resistentes à ação da luz solar.
Em resumo, a distribuição espaço-temporal do risco de infecção por Shigella foi estimada mais prevalente em países de baixa e média renda e parece sensível tanto à variação macro ou mesmo às variações em pequena escala (diária) na temperatura e outros fatores climatológicos. Essas descobertas devem informar às autoridades e aos pesquisadores os pontos de seleção de locais para os próximos ensaios de vacina contra Shigella de fase 3 e as populações que vivem nesses pontos críticos devem ser consideradas de alta prioridade para eventuais campanhas de distribuição de vacinas.
Artigo original:
Badr et al. Spatiotemporal variation in risk of Shigella infection in childhood: a global risk mapping and prediction model using individual participant data. The Lancet Global Health, Volume 11, Issue 3, March 2023, Pages e373-e384, 2023.
https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S2214109X22005496?via%3Dihub#fig1
Fonte: Prof. Dr. Pedro J. C. Magalhães e Prof. Dr. Aldo Ângelo Moreira Lima/Universidade Federal do Ceará – UFC