Grupo de estudo em análogos de nucleotídeos antirretrovirais para COVID-C19 (ARTAN-C19)
Data da publicação: 23 de dezembro de 2021 Categoria: Sem categoriaDesde o início da pandemia, medicamentos foram noticiados como eficazes para combater a COVID-19, doença grave causada pelo novo coronavírus SARS-CoV-2. Notícias surgem e se popularizam a partir de relatos sobre testes preliminares realizados, por exemplo, misturando-se um dado medicamento com células mantidas em meio artificial na presença do vírus causador da doença. A maioria das notícias, entretanto, sem evidências convincentes baseadas em robustos métodos clínicos em seres humanos.
Assim foi feito com uma combinação dos fármacos tenofovir e emtricitabina, medicamentos tradicionalmente indicados a pacientes portadores do vírus HIV, mas que haviam sido promissores em inibir enzima polimerase de RNA do SARS-CoV-2 em estudos de simulação computacional ou mesmo em testes com animais experimentalmente infectados com o vírus SARS-CoV-2. Esses estudos preliminares apontaram que esses fármacos poderiam reduzir a infecção e, consequentemente, a gravidade da COVID-19 e serviram de base para que a combinação tenofovir e emtricitabina pudesse ser testada em seres humanos.
Para testar essa hipótese, estudo foi realizado no Ceará com 227 pacientes encaminhados ao Hospital São José de Doenças Infecciosas durante a pandemia de COVID-19 entre os meses de novembro de 2020 a julho de 2021. Todos eles apresentavam suspeita clínica de infecção respiratória por SARS-CoV-2, de intensidade leve a moderada, definida como a ausência de dispneia, dificuldade respiratória e uma saturação de O2 <95%.
Os pacientes foram divididos em 3 grupos, acompanhados no hospital por período de 10 dias. No primeiro grupo, 75 pacientes foram receitados com tenofovir, uma dose por dia de 300 mg. No segundo grupo, 74 pacientes receberam a mesma dose de tenofovir junto com uma dose de emtricitabina (200 mg/dia). O terceiro grupo foi formado por 77 pacientes tratados apenas com vitamina C (500 mg/dia). No decorrer do estudo, o percentual de pacientes positivos para SARS-CoV-2 variou de 61 a 63% nesses grupos, isto é, 6 de cada 10 pacientes verdadeiramente estavam infectados pelo vírus da COVID-19. Vale ressaltar que o estudo seguiu os preceitos éticos para pesquisa com seres humanos sendo o número de pacientes em cada grupo determinado por testes estatísticos adequados para dar suporte às conclusões obtidas.
Os pacientes foram acompanhados por profissionais médicos ao longo do estudo. Nesse período, amostras de sangue e de secreções nasais foram coletadas para avaliação laboratorial no Núcleo de Biomedicina da Universidade Federal do Ceará (UFC). Além dos dados laboratoriais, dados demográficos, sintomas clínicos e relatos de eventos adversos ao tratamento foram registrados. Esse tipo de abordagem possui características próprias e definidas cientificamente como ensaio clínico prospectivo, randomizado, duplo-cego e controlado por placebo, a vitamina C. Esse tipo de desenho experimental diminui a possibilidade de conclusões enviesadas, isto é, será mais seguro afirmar se o tratamento verdadeiramente serve ou não serve para combater a COVID-19.
Do ponto de vista clínico, mais de 70% de todos os pacientes relataram dor de cabeça, dores musculares, tosse e corrimento nasal como principais sinais e sintomas. Entretanto, se considerarmos apenas os pacientes com teste RT-PCR positivo para COVID-19, os principais sinais e sintomas clínicos foram febre e alterações do olfato e do paladar. Para os pacientes com teste RT-PCR negativos para SARS-CoV-2, dor de garganta foi o principal sintoma. Isso significa que, durante a epidemia de COVID-19, quando a SARS-CoV-2 esteve presente na comunidade, maiores índices de suspeita da doença ocorreram em pacientes que apresentaram início agudo de febre (≥37,8 ° C) com alterações de olfato e paladar. Esses dados foram importantes para balizar a avaliação da eficácia dos fármacos tenofovir e emtricitabina em pacientes com COVID-19.
Apesar das evidências preliminares apontarem a potencial utilidade do tenofovir e emtricitabina, o teste em pacientes com COVID-19 leve a moderada revelou que não houve diferenças nos sinais e sintomas em comparação com o grupo de pacientes não tratados (os que receberam apenas a vitamina C), ou seja, os antirretrovirais estudados não possuem eficácia para diminuir os sintomas da COVID-19 leve a moderada.
Além da avaliação clínica, os resultados da avaliação laboratorial permitiram conhecer o perfil molecular dos pacientes com COVID-19 incluídos no estudo. O estudo avaliou os níveis biológicos de algumas moléculas importantes para o desenvolvimento dos processos inflamatórios corporais. Quando infecta um organismo, o SARS-CoV-2 (veja a figura ilustrativa) é capaz de invadir células corporais (especialmente o epitélio das vias aéreas) e isso causa interações entre as proteínas virais (ORF3a, ORF7a, M, N) com proteínas do hospedeiro, gerando o recrutamento de vias de sinalização biológica que promovem inflamação e resultam em migração de células inflamatórias, edema, danos celulares e demais manifestações sistêmicas que se relacionam com os sintomas da COVID-19. Estas moléculas recebem a denominação de biomarcadores.
No estudo realizado em Fortaleza, pacientes confirmados por RT-PCR para COVID-19 apresentaram níveis mais elevados de vários biomarcadores, dentre os quais: G-CSF, IL-1β, IL-6, IL-8 e TNF-α. Esses níveis mais altos foram confirmados em diferentes períodos da doença nesses pacientes, mesmo após 28 dias do início da internação dos indivíduos no hospital. Esses dados indicam que a resposta inflamatória desses indivíduos estava exacerbada, o que pode estar associado à severidade da COVID-19 em comparação com os pacientes com infecção por outros agentes infecciosos como o vírus da Influenza, comumente chamada de gripe. O tratamento desses pacientes com os antirretrovirais tenofovir e emtricitabina também não alterou os níveis desses biomarcadores, o que permite compreender o porquê da ineficácia desses fármacos em não melhorarem os sinais e sintomas durante a doença.
O estudo realizado no Ceará tem vários aspectos que precisam ser destacados. Permite ter um recorte da doença que aconteceu em terras alencarinas. Expande o nível de conhecimento da patobiologia da COVID-19. Revela o perfil altamente qualificado dos pesquisadores locais e consolida a práxis de realizar pesquisas clínicas de alto nível no estado, e revela a capacidade de formação de rede com pesquisadores localizados em outras instituições. Por fim, permite afirmar com rigor científico que não há evidência que suporte o uso dos antirretorivirais tenofovir e emtricitabina como tratamento farmacológico para COVID-19.
Para ver o estudo completo, visite o link do artigo publicado no exterior.