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Internacionalização na Faculdade de Medicina, UFC

Data da publicação: 13 de fevereiro de 2023 Categoria: divulgação científica

Desde a fundação da Universidade Federal do Ceará (UFC), o Reitor pioneiro Prof. Antônio Martins Filho, ensinou sobre a nobreza da missão da educação em cultivar a compreensão do mundo que nos cerca em prol da melhoria da qualidade de vida da população. A educação é, portanto, imperativa para proteger a democracia; que é o poder nas mãos do povo; que se o povo alguma vez parecer irresponsável por esse poder, a solução não é tirar o poder do povo, mas educá-lo. Neste sentido, o Prof. Martins Filho criou a Universidade Federal do Ceará, sob o lema “O universal pelo regional” ou “pensar globalmente, agir localmente”. Da nossa parte, cultivamos o intercâmbio internacional entre a UFC e a University of Virginia, (UVa) sob o lema: “engajar-se como se tudo dependesse de você, mas saber que tudo depende de Deus”.

Nestes 75 anos de comemoração da fundação da Faculdade de Medicina (FAMED), o programa de colaboração científica e tecnológica entre a UFC e a UVa completa em 2023 46 anos de intercâmbio ininterrupto. Até onde sabemos, se trata do convênio internacional mais longevo, produtivo, regular e ainda ativo em ambas as universidades, tornando-se, portanto, modelo de colaboração internacional em ciências básicas e tecnologias translacionais aplicadas à biomedicina e medicina. É tido como pedra fundamental na construção do Programa de Pós-Graduação em Farmacologia, originado no Departamento de Fisiologia e Farmacologia e que neste ano de 2022 foi elevado à nota máxima, o Nível 7 da CAPES, agência nacional que avalia os cursos de pós-graduação no Brasil. O intercâmbio UFC & UVa também foi crucial no desenvolvimento dos programas de pós-graduações em Microbiologia e Ciências Médicas, ambos níveis 6.

Descrevemos aqui três lições básicas que aprendemos juntos ao longo desse tempo: (a) colaboração internacional, educação e desenvolvimento; (b) sobre ciência; e (c) lições para sociedade e civilização.

  • Colaboração internacional, educação e desenvolvimento

Os principais ingredientes de um programa bem-sucedido de colaboração internacional com impacto duradouro incluem características essenciais um quadro de indivíduos profundamente comprometidos e simpáticos, cujos objetivos pessoais e institucionais incluem o sucesso do intercâmbio. Outro ingrediente fundamental da colaboração é o apoio e o respaldo institucional em longo prazo ao intercâmbio, que fortalece as instituições.

  • Sobre ciência

Aprendemos ao longo dos anos que as doenças que afligem os desfavorecidos nos deram uma das maiores lições para a ciência e para a sociedade. Para ciência, o conhecimento adquirido com a cólera, enteropatia tropical, infecções entéricas e desnutrição, por exemplo, levou a muitas descobertas sobre a regulação fisiológica e farmacológica da sinalização celular bem como a patobiologia de uma série de doenças como cólera, Escherichia coli diarreiogênica / uropatogênica, hipertensão arterial, fibrose cística, colite ulcerativa, doença de Crohn, disbiose da microbiota intestinal, disfunção da barreira do epitélio intestinal e outras tanto em animais como em seres humanos.

  • Lições para sociedade e civilização

A mais importante das lições é a civilização. A saúde com certeza tem um valor humano universal, histórico e sem precedentes que transcende todas as fronteiras geopolíticas e fornece base inatacável para a construção de relações humanas em todo o mundo. A saúde precária dos desfavorecidos e a constante frequência de endemias, epidemias e pandemias no mundo ameaça continuamente nossa sobrevivência. Assim, o desenvolvimento de educação melhor e globalizada, incluindo interiorização e internacionalização, bem como o desenvolvimento científico principalmente na saúde, além de um controle ambiental e populacional são essenciais para o benefício das comunidades e da civilização humana. À luz da história, seremos avaliados pelo quão bem resolvemos essas questões para o benefício unificado da nossa civilização.

Breve histórico do início e desenvolvimento do programa de colaboração internacional entre a UFC & UVa.

Em 1977, o Dr. Edward Hook, Chefe do Departamento de Medicina, Centro Médico da UVa, e seu colega Prof. Richard L Guerrant visitaram pela primeira vez a Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará em busca de médicos interessados e ambiente favorável para a colaboração universitária ao estudo de doenças infecciosas diarreicas e parasitárias1. E ficaram imediatamente impressionados com três coisas: a excelente ciência (e cientistas, como o Prof. Manassés Fonteles), as boas instalações do Hospital das Clínicas (então dirigido pelo Prof. Nogueira Paes) e o excelente e único Centro de Saúde Materno-Infantil (dirigido pelo Prof. Galba Araújo e pela Profa. Maria Auxiliadora de Souza), onde haviam acabado de desenvolver um programa pioneiro de saúde materna rural que reduzira as complicações da gravidez tardia e do parto, bem como cesarianas desnecessárias, a praticamente zero. Todavia, cerca de 11% das crianças nascidas neste programa morriam nos primeiros dois anos, principalmente de diarreia. Assim sendo, foram graciosamente receptivos aos interesses comuns em estudar diarreia infantil e infecções parasitárias.

A história também envolveu sacrifícios, inclusive pessoais. Quatro anos depois (1980) da visita inicial do Prof. Guerrant ao Ceará, a esposa do Prof. Nogueira apresentava uma súbita doença que incluía arritmia, hipocalemia e edema generalizado, sob a suspeita de se tratar de um quadro de Cushing, mas diagnosticado em São Paulo como Apudoma, um tipo raro de tumor neuroendócrino. Nessa época, o Dr. Guerrant novamente visitava Fortaleza e se prontificou a levar para o serviço de endocrinologia da UVA uma amostra de soro e do tecido tumoral para realizar dosagens hormonais e análise histológica. O tumor foi estudado com técnicas histoquímicas e dosagens de vários hormônios, incluindo fator de liberação do hormônio do crescimento (GFGH) e hormônio adrenocorticotrófico (ACTH), dentre outros. Com isso, as células tumorais foram cultivadas. Um ano depois, o Dr. Guerrant me pediu para autorizar o Dr. Thorner a usar seus reagentes experimentais para estudar o tecido do tumor. O grupo Salk caracterizou e produziu GHRF de um paciente acromegálico de Thorner com tumor de ilhotas pancreáticas. Graças a essa sequência de eventos e relacionamentos, milhares de crianças em todo o mundo estão crescendo novamente. Dick Guerrant, sua prestatividade e curiosidade científica ajudaram a levar a esses avanços na medicina e à possibilidade de nossa participação no progresso da UVa.

[Nota: Michael Thorner esclareceu que foi “Wylie Vale no Salk [quem] fez [GHRH] para nós e Serono indenizou o Salk para nos permitir estudá-lo”. E minha lembrança de suspeitar pela primeira vez da aparência Cushingoid da Sra. Paes foi em um gracioso almoço ao meio-dia em sua casa, após o qual combinamos que eu levasse seu soro ao laboratório do Dr. Thorner na UVa. O Dr. Thorner e colegas do Salk Institute caracterizaram o GHRH (Nature 300: 276, 1982) de paciente com um tumor de ilhotas pancreáticas (JCI 70: 965, 1982) que ajudou a confirmar o diagnóstico da Sra. Paes].

Vale ressaltar o papel fundamental do Prof. Manassés nesta jornada acadêmica. Em 1980, retornara de ano sabático nos Estados Unidos, onde trabalhara com o Prof. Julius Cohen no desenvolvimento e montagem de modelo de perfusão renal ex-vivo para estudos metabólicos e de mecanismos de transportes tubulares de sódio e potássio. Na época, o interesse era estudar os mecanismos de transportes de íons associados com mensageiros intracelulares, com ênfase na ainda recente descoberta da molécula de adenosina monofosfato cíclica (AMPc). A toxina da cólera foi descrita como tendo potente ação de estímulo da síntese desse mensageiro hormonal intracelular, tornando-se assim importante ferramenta farmacológica para estudo no sistema de perfusão renal.

Em 1981, após completar a Residência em Doenças Infecciosas, ingressei no Mestrado de Farmacologia sob a orientação do Prof. Manassés. Com a técnica experimental de perfusão renal, estudei as ações da toxina produzida pelo Vibrio cholera nos mecanismos de transporte de sódio e potássio. Neste período, conheci, por intermédio do Prof. Galba, o Prof. Guerrant. Um ano depois, ele descreveria nova toxina bacteriana produzida pela Escherichia coli, capaz de estimular a guanilato ciclase para produzir guanosina monofosfato cíclica (GMPc), outro potente mensageiro hormonal intracelular. Isolados de fezes obtidas de crianças com diarreia no município de Pacatuba, CE, possibilitaram o cultivo da bactéria em laboratório e o isolamento da toxina patogênica, termoestável, útil ferramenta farmacológica para estudo de mecanismos de transportes de sódio e potássio. Pouco tempo depois, usando o modelo experimental de rim isolado, descrevemos de forma original o efeito natriurético dessa toxina termoestável da E. coli o que fez surgir a hipótese da existência de um hormônio endógeno, gerando a descoberta da família das guanilinas. As estruturas desses peptídeos foram identificadas, clonadas e levaram ao desenvolvimento dos fármacos linaclotide e plecanatide, ambos eficazes no tratamento da dor abdominal em pacientes com constipação idiopática crônica2,3,4,5, pois também estimulam a contratilidade intestinal.

Durante este período de trabalho (1980-1983) passei a ter mais contatos com o Dr. Guerrant, o que resultou no convite para um Postdoctoral Fellowship na Universidade de Virginia (UVA), nos EUA, para onde me mudei com a família entre 1984 e 1988, sob intensa formação acadêmica, pautada no enfrentamento de problemas em saúde pública no âmbito local, nacional e até mesmo global. Incluem-se neste contexto, problemas causados por infecções entéricas em crianças, infecções entéricas repetitivas, enteropatia ambiental e desnutrição, complexo de doenças resumido como Ciclo Vicioso Diarreia e Desnutrição.

Ao retornar dos EUA, em 1988, realizamos em uma comunidade pobre próxima à Faculdade de Medicina da UFC um primeiro estudo coorte com 189 crianças, acompanhadas duas vezes por semana. Descobrimos que a ocorrência de diarreia persistente (duração >13 dias) em crianças sinalizava para déficits de crescimento e aumento nos episódios de diarreia nestes indivíduos. Pela primeira vez, sugeriu-se a necessidade de atenção imediata e duradoura para a diarreia infantil, sob risco de potenciais danos e impacto a longo prazo6. Um segundo estudo de coorte com 414 crianças dessa comunidade acompanhadas por período de dez anos, revelou que mesmo as crianças com episódio de diarreia sob duração mais curta (7-13 dias) apresentavam também maior risco para desenvolver desnutrição e consequentemente para o aumento no ciclo vicioso diarreia-desnutrição7.

Na avaliação dos efeitos à longo prazo (período de 10 anos) de doenças diarreicas e infecções parasitárias em crianças, passamos a utilizar testes cognitivos (Teste de McCarthy Draw-A-Design), testes físicos de aptidão (Harvard Step Test), e dados de escolaridade. Assim, documentamos pela primeira vez que crianças com mais episódios de diarreia nos primeiros dois anos de idade apresentam déficit de cognição e aptidão física, e perda de pelo menos um ano de escolaridade quando avaliadas no período entre os 6-9 anos de idade. Crianças que tiveram episódios de diarreia e infecções por Cryptosporidium spp. também tiveram déficits significantes na cognição e atividade física8.

Estes resultados chamaram a atenção em saúde pública global e levaram ao estudo multicêntrico internacional denominado Desnutrição-Infecção Entérica (MAL-ED; http://www.ibisab.ufc.br) realizado em vários coortes envolvendo 2.145 crianças em oito países, Brasil, Peru, África do Sul, Tanzânia, Índia, Bangladesh, Paquistão e Nepal. Dados etiológicos dessas crianças demonstraram que patógenos entéricos estão associados negativamente com o desenvolvimento cognitivo em crianças de 0-24 meses de idade9. De 6.625 amostras de fezes diarreicas analisadas, mostramos importantes causas etiológicas específicas associadas com infecções entéricas, enteropatia ambiental, e o ciclo vicioso diarreia-desnutrição. Desta forma, os dez principais microrganismos associados com infecções entéricas em ordem decrescente foram: Shigella ssp, sapovirus, rotavírus, adenovírus, E. coli enterotoxigênica, norovirus, astrovirus, Campylobacter jejuni / coli, Cryptosporidium spp, e E. coli enteropatogênica típica10,11. Foi possível ainda associar a infecção por Shigella spp., E. coli enteroagregativa, Campylobacter spp., e Giardia com déficits no crescimento das crianças. Esta informação serve para enfatizar causalidades de infecções entéricas e enteropatia ambiental, associando-as com desnutrição infantil e o maior risco para aumento no ciclo vicioso diarreia-desnutrição.

Ademais, estudamos a relação entre microbiota intestinal e o desenvolvimento de probióticos e prebióticos para prevenção e recuperação da barreira funcional do epitélio intestinal e, por consequência, no bloqueio efetivo do ciclo vicioso diarreia-desnutrição. Estudos pré-clínicos e clínicos envolvendo crianças de vários coortes incluindo o estudo MAL-ED demonstraram a associação da imaturidade da microbiota intestinal com a desnutrição infantil12,13,14. Já a adoção de dietas estimulantes de microbiota intestinal saudável resultou em melhora clínica significativa na recuperação de crianças desnutridas17. Ensaios clínicos realizados em comunidades urbanas em Fortaleza, demonstraram a eficácia do tratamento com glutamina e alanil-glutamina na recuperação da barreira funcional do epitélio intestinal, bem como na melhora clínica do estado nutricional das crianças15,16. Estes resultados apontam para o desenvolvimento de terapias promissoras na prevenção, recuperação da desnutrição infantil e bloqueio efetivo no complexo ciclo vicioso diarreia-desnutrição, tão importante em saúde pública nacional e global.

Finalmente, gostaria de enfatizar meu reconhecimento as fundações Kellogg, Clark e Rockefeller, Project Hope, NIH, CNPq, CAPES, FUNCAP e Fundação BMGF) pelo fomento a este intercâmbio que se tornou modelo de colaborações acadêmicas internacionais. Foram mais de 150 publicações colaborativas, 5 teses de doutorado, um livro e mais de 80 intercambistas, bolsistas e professores, cujas vidas e contribuições serão para sempre afetadas pelo que aprendemos aqui.

Internacionalizar a ciência brasileira é internalizar a ciência no Brasil

A ciência tem por natureza vocação universal. Por sua complexidade, temas como a física de partículas são investigados por equipes internacionais, como no caso do CERN, Organização Europeia para Pesquisa Nuclear, na Suíça. É difícil tratar questões climáticas em um único país, pois fenômenos em nosso ambiente influenciam nosso planeta como um todo. Ele é válido para pesquisas das doenças ditas negligenciadas, como a malária. A novidade é o ritmo quase vertiginoso do atual intercâmbio acadêmico. Nos países desenvolvidos, é impossível gerar conhecimento sem cientistas com formação diversificada. Já aos países ainda em desenvolvimento, atuar em redes internacionais de pesquisa enseja a transferência do conhecimento. Tal processo vivenciamos no Brasil, de 2012 a 2015, mercê do exitoso programa Ciência sem Fronteiras. À época, a UFC estabeleceu profícuo intercâmbio com o Prof. Daniel Sifrim, renomado esofagólogo da Queen Mary University of London, a fim de estudar de forma pioneira no Brasil o efeito protetor de produtos naturais sobre a permeabilidade esofagiana ante a corrosão cloridro, péptica e biliar.

Por sua vez, o Brasil há de cuidar do reverso da internacionalização da ciência, isto é internalizar a ciência no país. Para tanto, carecemos sediar Universidades de alto gabarito: com elevada produção acadêmica, quantitativa e qualitativamente; com corpo docente notável, membro das principais academias e detentores de prêmios relevantes; formação de egressos com alta qualidade e capaz, portanto, de atrair alunos e docentes estrangeiros. Para isso se consubstanciar urge contarmos com quadro técnico de alta qualidade; avaliação constante de mérito dos professores e servidores; menos burocracia na captação de doações financeiras; além de estímulos para transformação do conhecimento em negócios. Uma iniciativa simples e salutar seria a Administração Superior apoiar laboratórios multiusuários para os grupos de pesquisa que se dedicam a elevar a Universidade brasileira.

Por fim, somos de opinião restar ainda às Universidades brasileiras contribuir na redução das diferenças regionais mediante a interiorização dos campi nos grotões nacionais bem como na elevação do ensino médio das escolas públicas mediante ações de divulgação científica.

Fonte:

Armênio Aguiar dos Santos1 e Aldo Ângelo Moreira Lima2
1,2 Professores Titulares de Fisiologia e Farmacologia, Departamento de Fisiologia e Farmacologia, Faculdade de Medicina, Universidade Federal do Ceará

Referências: Capítulo_Internacionalização – Download

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